sexta-feira, 16 de abril de 2010

...

Mãos

Tropeço nos meus pensamentos. Bagagens amontoadas de vida. Nunca fui arrumada.

Aquela cobra que surgiu debaixo do portão que em pânico escolheu o lado errado e chocou com uma parede enquanto eu voava para a caixa aberta de um carro está bem junto ao meu estômago. Nesse carro vai também um caixão, dezenas de pessoas a cantarem África e eu entre curvas de areia a conduzir sem saber como. Nem travões, nem destino. Só. E sem dúvidas. Acho que se alojou entre as minhas costelas porque o sinto quando respiro.
Os “Bons Dias” do caminho andam pela minha garganta ainda com vida própria. Continuo a dizê-los por instinto. As minhas crianças do Centro estão-me debaixo da pele, no mesmo lugar onde o silêncio já me habita antes de cada refeição.
Os Efeitos Borboleta encontram-se no meu pulsar, pressinto a sua continuação entre cada batimento. As pessoas que conheci transformam-se em cor de terra e entranham-se de forma clara, uma a uma, em cada vermelho de sangue. Já totalmente me são.
E posso trocar de anatomia. No lugar do estômago posso passar a ter fígado ou apenas um breve som. São histórias que me preenchem. Pedaços vivos de gente e vísceras.

Não fazia qualquer sentido não me partilhar. Agora… agora vou viajar. Viver a deslocação. Um lugar que sinto tão meu.

Foi e é muito bom ter-vos por cá.
Aproveitem os dias!
Clara

domingo, 11 de abril de 2010

Um fim sem fim

A Rute enviou-me esta carta por mail. Partilho-a porque também vos é dirigida...

"Ola Clara
Quero em nome da REENCONTRO pedir-lhe para aceitar os nossos sinceros agradecimentos por tudo o que tem feito por esta associação, mas particularmente pelas crianças. Pude notar o teu grande esforço na busca de soluções para implementação de valiosos projectos da associação em prol das crianças, notei também a sua grande alegria em ver concretizados os nossos anseios e ter conseguido trazer alguma ajuda para nós.
Estou surpreendida e inteiramente grata por todos os que prontamente doaram respondendo o apelo que lançou. Gostaria que transmitisse a nossa maior gratidão, e não sei o que te dizer e o que fazer para sentirem que ajudaram de facto um grupo de crianças que realmente precisava, mas espero que Deus o faça.
Agradeço a toda a sua equipa porque deveras sois uma verdadeira equipa, não tenho palavras. Obrigada! Obrigada! Obrigada eu continuarei a lutar por estas crianças que por vezes me fazem deitar lágrimas por não ter resposta dos problemas delas, quero vê-las crescerem formadas e prontas para enfrentarem com capacidade o amanhã de cada.
Com a ajuda prestada conseguimos adquirir 2 maquinas de costura (uma manual e outra mista) 4 peças de tecidos diversos, 6 rolos de linhas(diversas cores) 2 frascos para manutenção das maquinas, 100m de renda para enfeitas, 50 botões, 50 zipes, duas tesouras e uma fita métrica.
Obrigada pelo material escolar para as crianças e brinquedos.
Sabes Clara para nos foi um grande prazer termo-nos conhecido. Obrigada! Beijinhos e tenho muitas saudades."
(Eu também tenho. Embora saiba que não vos deixo.)

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Hoje


É hoje. Saio daqui a uns minutos do Chibuto. Não sei quando regresso. Não quero sentir que deixo esta terra para trás. É com força que mantenho os calcanhares no chão quando há três meses pousava leve na descoberta.
Deixo-me aqui. Embora vá.

domingo, 4 de abril de 2010

Efeito Borboleta II... e meio!

Acrescenta-se “meio” e temos uma continuação… o passo seguinte para facilitarmos este projecto do Centro Comunitário terá íntima ligação com os Pintos iniciais mas com características bem diferentes.
“Branco é, galinha o põe. Qual é coisa qual é ela?”
… Ovos!! Ou melhor: Galinhas Poedeiras!!
Só que estas são finas e vão viver num belo anexo (como podem ver na imagem, já construído e preparado para as Damas). Além de que são estrangeiras e por isso prometem! Podem ser louraças ou de pena escura, a incógnita mantém-se até à sua chegada já que vêm da vizinha África do Sul, terra conhecida pela sua enorme riqueza na diversidade.
Podia entrar no “porquê Galinhas Poedeiras” com um discurso exuberante de esquemas lógicos ou de plena abstracção, sentia até um certo prazer em dar livre uso à pena (à tecla, digo) mas podia cair em fáceis demagogias… a verdade é que a razão é simples. As Galinhas Poedeiras dão desculpa ao pleonasmo: põem ovos que se fartam! Melhora-se a alimentação das crianças do Centro, podem-se vender ou transformar em Pintos. No fundo esta capoeira constitui e representa o que já suspeitava há muito: guarda em si a pura ideia, engrandece, é razão de vida. E combate todos os que defendem o não pensar… afinal o que ando a fazer por cá não é mais do que aplicar… a mais pura Filosofia.

Entretanto apresento-vos a evolução:

Os pintos já são franguitos encantadoramente feios, como se pretende!
Na altura da pose para a foto tinham 17 dias!


Curiosidade. É tão natural. E se estiver abafada por necessidades mais urgentes depende de nós fazer com que não morra.
A mim comove-me.
E dá-me alento.

(mais um passo foi dado...)

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Reencontro - Efeito Borboleta IV

Apago e escrevo, reapago rescrevo… ando nisto há meia hora e não me agrada… fico, até, à beira da irritação, um pequeno desequilíbrio e já está: não há palavras, nem texto, nem uma letra sequer, nada. Mostro umas fotos e pronto. A sensação é conhecida. Quando vivi na praia do Baleal, quando andei pelos Açores, quando passei pela Polinésia. Tão bonito, tão cheio, tão transcendente que temia mergulhar na escrita demasiado colorida, no piroso… Agora. Aqui. Nas vidas da Reencontro. Escrevo a tristeza. E temo a lamechice desenquadrada, o cair na pena fácil, na lágrima que se esquece. Não é justo, nem digno.


(em momento meditativo)

Talvez tenha descoberto uma forma. Para variar preciso da vossa ajuda. Neste caso é na postura que assumem ao ler. Dispam os casacos de sentir pena e da palavra “coitadinhos" entranhem aquela força de querer, a de luta pela mudança. Posso confiar? Então…

Sentei-me com a Rute no alpendre cá de casa. Duas cadeiras no chão vazio. Sei que sou pessoa mas depois do que vi nalgumas casas, naquelas famílias, diminui-me o género humano. Transformo-me quase em coisa. Estamos sentadas mas não consigo falar. Só tenho que lhe dizer que conseguimos dinheiro para comprar duas máquinas, os rolos de tecido, tesouras, linhas, agulhas, o transporte de Maputo. Mas. Não consigo falar. Lembro-me dos três irmãos que vivem sozinhos numa palhota aqui tão perto. Não vão à Escola, não vão ao hospital buscar os medicamentos (são seropositivos), mal comem, mal se lavam, mal se mexem. Porque ninguém os orienta. E porque têm dois, quatro e sete anos.
- Rute. Conseguimos.
Recebo um abraço só de silêncio.
- Conseguimos.
A Reencontro tenta apoiar 608 crianças órfãs, como sabem. E as histórias são todas deste tamanho. Não consigo não estar envolvida de corpo e alma neste projecto. Toca-me e desarma-me. Tira-me o que sou e obriga-me a ser mais. Sei que estas histórias não têm geografias, que existem ao nosso lado ou no fim do mundo, nada as torna especiais por serem longe. O que as torna especiais é existirem. Quando nunca deviam sequer ser um sopro.
Não tenho pretensões ou ilusões de que com este acto mudámos o mundo. Mas tenho a certeza que ajudámos a dar um passo para que estas pessoas possam trabalhar e lutar para mudar algumas vidas. Vão conseguir.

- Clarinha, levei aquelas crianças para Xai Xai. Estão a viver desde hoje numa casa de acolhimento.
(como sabias no que estava a pensar?)
A de 4 anos levou-a pela mão até ao quarto.
- É a minha cama.
Há grandezas que merecem apresentação.

Continuamos as duas sentadas no alpendre. Duas cadeiras, sós num chão. Já tão cheio.
A casa/escritório da Reencontro, no Chimundo.

O primeiro passo!

Uma máquina de costura manual

e outra manual e eléctrica (e os rolos de tecido!!)

Kanimambo! Obrigada!

Ainda temos algum dinheiro para ajudar a Reencontro. Durante a próxima semana vamos comprar mais materiais que permitam geração de rendimento para esta associação, sempre no sentido de se tornarem auto-sustentáveis.
Percebem? Não mergulhem na pena. Tenham noção da ajuda que deram.